Não tendo nascido em família e lugar privilegiado, assisti várias vezes a terríveis lutas de rua entre rapazes. Recordo-me com algum detalhe de alguns factos que então, como agora, considerava chocantes. O primeiro deles relaciona-se com a excitação que se apoderava dos pequenos espectadores de tais lutas.
Qualquer pequena ameaça que um «mini-forasteiro» (só estes se atreveriam a desafiar a ordem estabelecida) fizesse ao poder do rufia de serviço fazia tremer de excitação todos os outros que, imediatamente, fechavam o círculo entre os dois beliguerantes (também para impedir a fuga do candidato ao massacre).
Depois, sem conseguirem disfarçar a sua alegria por verem outros no papel de vítima, os garotos mais enfezados e fracos eram os que mais incitavam o «favorito» a massacrar o «perdedor» antecipado: «dá-lhe um pontapé», «parte-lhe o focinho», «aperta-lhe os tomates» eram algumas das simpáticas sugestões da arraia miúda, que serviam também de «claque» ruidosa e de «apoio moral» às agressões que o pequeno autocrata local levava a cabo com indisfarçável prazer.
Isto acontecia porque, de uma forma geral, era fácil antecipar o vencedor da refrega que era, por norma, sempre o mesmo.
Se isto me chocava era também por, entre outras coisas, verificar que muitos dos que «torciam» pelo «chefe» já tinham , pelo menos uma vez, sido alvos do mauzão. Havia algo de masoquista neste apoio incondicional ao agressor, pressentia eu (mais do que o compreendia, nessa altura). E essa impressão confirmou-se quando num certo dia apareceu no bairro um certo Joe, com ar pouco afoito, com uma bola de couro na mão, «exibicionismo» de status insuportável numa rua onde só existiam bolas de borracha.
Desde logo Fred decidiu que aquela bola, por direito, lhe pertencia e, como tal, foi directo ao assunto:
-Eh, ò copinho de leite: mostra cá a tua bola ò pai!
O recém-chegado fingiu nem o ouvir: continuou o seu caminho sem pestanejar. O resto da garotada considerou esta atitude de uma audácia criminosa e «meteu-se» ao barulho:
- Tás a ouvir, ò mongo? Passa pra cá a bola se não queres ficar sem dentes! -gritou logo Marquitos, o mais fraquito dos «pequenos facínoras» do bando, logo secundado pelos outros valentões.
O garoto da bola nem fez caso: continuou o seu caminho, pelo menos até ao ponto em que viu o seu caminho barrado pelo gorila do bairro que aproveitou logo para impor a sua Lei:
- Quando te pedi a bola, era só de empréstimo mas já que te fizeste surdo agora vais ficar sem ela. Bola pra cá ò anormal.
O mocito pousou a bola entre os seus dois pés e, sem aparentar medo, retorquiu, para gáudio do bando:
- Ora tenta lá tirar-ma!
O rufia não se fez rogado: empurrou o garoto com violência, fazendo-o estatelar-se no solo e apoderando-se da bola.
Por momentos, fez-se aquele breve silêncio que sempre antecede as tempestades e logo o círculo se fechou em volta dos dois. Pondo-se imediatamente de pé, o garoto agredido soltou uma espécie de grunhido e começou a espumar da boca. Findo o efeito surpresa desta atitude, começou a torcida a encorajar o pequeno capo local com as habituais invectivas que só pareceram enfurecer mais a vítima. Alguém prognosticou o resultado:
-Vais levar poucas, vais!
Dito isto, tudo o que se lhe seguiu foi incrivelmente rápido. O rufia, confiante, ainda segurava o seu troféu esférico nas mãos quando uma força e velocidade indescritível se abateram sobre ele: Um grito de guerra terrível e de repente, o candidato a massacrado transformara-se num feixe de nervos, músculos e velocidade, numa máquina de bater, cega e imparável como ninguém suspeitara. Acabaram-se abruptamente os incitamentos e um calafrio de tensão apoderou-se do gang. Fred já jazia no chão e Joe continua a bater-lhe, sem método mas com incrível eficácia. Fascinados e mudos, os outros assistiam agora à cena sem serem capazes de mover um único músculo, apesar das súplicas de ajuda do grandalhão abatido!
No fim da cena, o pelotão dispersou, envergonhado pelo choro convulsivo do ex-líder. Foi então que Joe, ainda fervendo de raiva, recuperou a bola e lançou a bravata:
-Então ò cobardes? Voltem aqui que eu ainda chego para vocês todos!
Temi por ele, pois supus (então pouco sabia da natureza humana) que os desertores, ofendidos na sua honra, se juntariam para o fazer pagar pela língua de palmo, coisa que estaria, de facto, ao alcance de um grupo tão numeroso. Puro engano: em breve a rua estava deserta, pois o massacrado também se retirava, coxeando e chorando baba e ranho.
Não há moral nesta história, apenas uma conclusão lógica: os conformados só o são porque acreditam numa ordem natural e imutável que regula todos os factos. Na verdade, todos os conformados são criaturas incrivelmente intolerantes (logo não conformistas) para com os revoltados mas só enquanto estes não revelam forças superiores à ordem estabelecida. Se eventualmente as relações de força se invertem, os conformados depressa se adaptam à nova ordem e conseguem mesmo convencer tudo e todos que sempre previram os acontecimentos. Foi o caso também aqui: em poucos dias o recém chegado foi «coroado» o novo rei da rua e os seus súbditos passaram a secundar todas as suas acções com a mesmo zelo e entusiasmo com que antes serviam o anterior chefe.
Quanto a Fred, também depressa aceitou a nova ordem. Perdeu o ímpeto para as lutas mas nem por isso deixou de se entusiasmar com as refregas alheias. Triste, não é? E mais triste ainda saber-se, como hoje sei, que estas crianças, neste aspecto, não cresceram nunca: ainda são assim. Todos eles!
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