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Saturday, June 11, 2011

Feios, porcos e maus (Brutti sporchi e cattivi)- os filmes da minha vida por Sir Frankie Goethe Wally Wood


Muito erradamente «feios, porcos e maus» tem sido classificado por alguns simplistas como obra acabada do neo-realismo italiano. Na verdade trata-se de um dos mais iconoclastas filmes que alguma vez foi produzido porque consegue, de uma assentada, desmontar todos os mitos, os progressistas como os tradicionalistas, em redor da pobreza e da família. Curiosamente porém, para uma película que viola todos os códigos e clichés de uns e outros, o filme não suscitou ataques significativos nem dos fiéis do Marxismo-Leninismo, nem da Igreja Católica, duas estruturas dominantes da sociedade Italiana dos anos 60.
Para isto, contribuiu decerto o epíteto de comédia e também, de alguma forma, o «tema» do filme ser extremamente incómodo para todos, permitindo a sua redução à dimensão de caricatura. Decerto o filme tem todos os ingredientes de comédia, mas na verdade, pela profundidade e desassombro com que narra a vida de uma família num bairro da lata de Roma, dificilmente se deixa reduzir àquela dimensão. Contrariando a visão neo-realista do lumpen como reservatório das qualidades humanas corroídas pela sociedade industrial e burguesa, contrariando também uma certa visão católica da família como unidade estável fundada nos laços da solidariedade consanguínea e da autoridade parental, o filme apresenta-nos uma família cuja disfuncionalidade não resulta apenas das condições materiais (Giacinto, o marido e pai até tem, algures, uma pequena fortuna que avaramente esconde dos outros), mas do feroz egoísmo de cada um dos membros da pequena selva que é a barraca onde habitam as doze (mãe, pai e dez filhos) personagens.
A coexistência nunca é pacífica, a lealdade fraterna, parental ou filial bem como a própria fidelidade conjugal são tão alheias e ausentes a este Universo que os membros do clã só se unem por razões de sobrevivência egoísta e para enfrentar em bloco as ameaças externas.
Esta «harmonia» caótica atinge o paroxismo quando Giacinto se apaixona por uma mulher que leva para a casa comum, já sobrelotada pelos outros onze.
Receosa que a nova criatura venha a deitar a mão ou a aproveitar-se do dinheiro que Giacinto escondeu, a matrona sua mulher decide então cortar o mal pela raíz, envenenando o marido. Esta é sem dúvida uma das mais magistrais cenas de cinema que já alguma vez vi: enquanto numa festa, a mulher serve pratada sobre pratada de macarroni ao sôfrego marido, todos os membros da família, coniventes no crime, espiam cada trejeito do comilão, esperando que a todo o momento ele acuse as convulsões do envenenamento, que teimosamente tardam a dar sinais de si, criando uma estranha tensão no próprio espectador.
Digo estranha tensão porque, por estas alturas, quem vê o filme já não sente empatia por ninguém, já não sente piedade por ninguém e também já não é capaz de julgar ninguém: a potencial vítima, a potencial assassina e os seus dez cúmplices filhos chafurdam todos no mesmo lodo de ignomínia e tudo o que lhes possa acontecer já não motiva qualquer espécie de receio ou ansiedade.
E boas razões tem quem vê o filme para não se apiedar de ninguém, pois no seu íntimo pressente que qualquer daquelas criaturas está melhor apetrechada para sobreviver do que qualquer um de nós.
Efectivamente, Giacinto sobrevive mesmo: mal sente as primeiras convulsões corre para o rio, bebe a sua água poluída, dá socos no estômago e começa a vomitar as enormes quantidades de comida que ingeriu. Aqui entramos na parte final: Giacinto bem sabe o que lhe tentaram fazer, sabe que ninguém ignorava os planos da sua mulher, mas depois das habituais «cenaças» tudo volta ao normal, pois que é uma tentativa de assassinato senão mais um pequeno detalhe na vida aquela família de sobreviventes?.
Esquecido pois o episódio, as velhas querelas quotidianas regressam, e no fim, a mais jovem das raparigas, entretando já crescidota, desloca-se à fonte com o recipiente e vemos...que está grávida. A vida vai pois continuar, naquele limbo onde esperança e desespero são palavras desprovidas de sentido.
Se recordo este filme, é para estabelecer, como sempre o faço, o respectivo paralelo com a sociedade actual. Vivemos um tempo desapiedado, em que o salve-se quem puder voltou a estar na ordem do dia. Tal como no filme, há algures fortunas escondidas. Há medos de uns e invejas de outros. Há egoísmo classista e individual. Há total falta de solidariedade entre os membros da famílis humana. Há uma espécie de vale-tudo para satisfazer certos apetites, nem todos resultantes das necessidades materiais. Há uma total falta de privacidade potenciada pelas televisões e pela Net. Há cusquice, intrigas, desconfianças. Em suma: há uma humanidade cujas características reais se descolam vertiginosamente de todos os conceitos de humanidade que uma certa moral cristã e humanista sempre nos impingiu.
Desta vez não direi ao leitor quem são os feios, os porcos e os maus: seria puro paternalismo quando não mesmo um insulto à sua inteligência!

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Viseu, Beira Alta, Portugal
autor satírico, cartoonista pseudónimo de António Gil, Poeta e Ficcionista, Não sectário, Agnóstico, Adepto Feroz da LIberdade de Imprensa e de Opinião...

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