Uma palavra basta para se falar de linguagem oral?
Não, porque uma palavra não faz uma linguagem. Para haver linguagem oral é necessário haver muitas, muitas palavras, todas ligadas entre si por nexo lógico de sequência e intencionalidade. Ou seja, são necessárias horas de disponibilidade para a conversa e, não menos difícil, ter assunto para mantê-la. É por isso que a linguagem não pode ter sido inventada por um homem só. Estou mesmo convencida que a linguagem foi criada por uma mulher só. Infelizmente, graças ao enorme déficit de memória dos primeiros hominídeos, essa primeira experiência traumática pouco ensinou aos machos Totós que continuaram a temer a língua das parceiras, em lugar de aprenderem a falá-la ou (ainda mais simples), de se conformarem a viver em celibato.
Foi necessária uma experiência extrema para pôr um Totó a falar. A coisa passou-se assim:
« Uma grande crise assola o Planalto de Asdekavir. A persistente falta de chuva e o calor excessivo secaram os pastos e impossibilitaram as árvores de dar fruto. Os herbívoros, por falta de plantas, partiram. Os carnívoros, por falta de herbívoros, partiram. Os omnívoros, por falta de plantas e de herbívoros, partiram. Os poucos Grunhos machos, derrotados e humilhados, partiram. As fêmeas Totós, suplantadas pelas rivais grunhas, partiram. Pouco atentos à migração geral, os Totós, as nóveis esposas Grunhas e descendência de uns e outras ficaram.
Embora de dia para dia se tornasse cada vez mais difícil arranjar alimento, numa primeira fase, não se saíram mal: sem a concorrência dos outros animais todos, primos e primas incluídos, puderam desencantar raízes, sementes e um ou outro mamífero demasiado enfraquecido para seguir a longa migração. A sorte, porém, não dura sempre e, num feio dia de Inverno, comido o último coelho famélico, o clã dos Totós compreendeu, tardiamente, que duros tempos se aproximavam.
Mesmo sem o dom da fala, sabiam ser demasiado tarde para partir: já todos lhes levavam um grande avanço. Em face da desoladora circunstância, depressa concluíram que era preciso encontrar um culpado, de preferência antes da hora da próxima refeição. Um relance pelo grupo indicava que Totó três era o melhor fornecido de carnes. Essa leitura, podemos acreditá-lo, fizeram-na todos os Totós presentes na caverna, Totó três incluído.
E foi aí que tudo aconteceu: aflito com o ar reprovador dos seus companheiros e companheiras (há crime maior que ser gordo em terra de magros?), receando o ataque eminente, num acto de desespero, soltou a língua e falou, longamente, mesmo sem uma linguagem estruturada e sem palavras definidas. O curioso é que os outros Totós compreenderam que, com aqueles estranhos sons, ele lhes explicava que a razão de ser assim anafadinho, ao contrário do que pudesse parecer, não residia em comer mais do que eles mas antes em aproveitar melhor o pouco que comia.
Entenderam também que ele rejeitava a culpa da falta de chuva e concomitante migração da bicharada. Até detectou neles alguma simpatia, quando lhes explicou que cozinharem-no só resolveriam o problema por um ou dois dias, considerando o notável apetite dos fedelhos. Na verdade, todos estavam prontos para deplorar, com ele, a baixeza do instinto animal que os levara, por um momento que fosse, a considerarem-no como peça comestível. O seu longo discurso, levou às lágrimas as senhoras Grunha uma e Grunha três e Grunha Três e os guerreiros Totó um, Totó dois e Totó quatro, ao aplauso ruidoso.
Finda a dissertação, quando o infeliz já se julgava a salvo, Totó um esmagou-lhe o crânio com uma mocada certeira. Grunha uma e Grunha duas esquartejaram-no. Totó quatro e Totó cinco assaram-no no espeto. A seguir, todos o comeram com redobrado apetite, considerando o tempo que dedicaram a ouvir aquelas patranhas, mais o tempo de grelhar os nacos do bicho em brasas de cedro de lei.
Aos cépticos que, por este desolador canibalismo, duvidarem que houve aqui um arremedo de linguagem oral, posso garantir que a ameaça de violência basta, normalmente, para pôr qualquer Totó a falar fluentemente, mesmo que não saiba bem o que está a dizer. Quanto ao facto de Totó três ter sido grelhado, apesar do seu discurso, relembro a actualidade do gesto: Ainda hoje, todos os Totós falam para se salvar. Ainda hoje, todos os Totós se fritam por terem falado demais.
Apesar destas primeiras tentativas, a fala, tal como a conhecemos hoje, continuava a não suscitar grande adesão, nem entre Grunhos, nem entre Totós que preferiam continuar a resolver tudo à paulada.
Então a linguagem oral foi inventada e logo esquecida?
Sim, o que faltava aos Macacos Pelados não eram capacidades vocais (essas até eram notáveis) nem falta de percursores (houve muitos, como veremos). O que lhes faltava, antes do mais, era a motivação para falar. E de início, nem os Grunhos nem Totós viam grande interesse na conversa fiada. Falar de quê quando basta grunhir alto, fazer cara de mau ou dar uns tabefes para ser obedecido? Isto não nos deve parecer estranho: um invento raras vezes suscita entusiasmo inicial. Presos aos seus hábitos, os Pelados de então encararam a fala como uma dessas modernices que se dispensavam de adquirir.
Outras tentativas foram surgindo, umas dando origem a experiências duradouras de construção de uma língua, outras perdendo-se sem deixar rasto. Até que um dia...
Como? a linguagem oral fez-se num dia?
Um dia é força de expressão: também pode ter sido numa noite. Imagine-se uma fêmea grunha enquanto espera pelo Totó pai de cinco das suas dez esfomeadas crias. E agora imagine-se a sua fúria quando, depois de horas de choradeira dos rebentos, o vê chegar à gruta, de mãos a abanar, mas com um ar estranhamente feliz e um hálito mais azedo que de costume. Que lhe fará ela, em tal circunstância? Não pode bater-lhe porque, embora lambão, ele tem mais força que ela. Não lhe pode pedir o divórcio porque nesses tempos não há pensões de alimentação para ninguém.
Resta-lhe a grande arma dos Grunhos: as cordas vocais. É certo e sabido que ela vai gritar-lhe tanto aos ouvidos que a criançada triplicará o volume da choradeira. Este alarido vai enfurecer os vizinhos que se porão também a gritar, contra a família barulhenta. A partir daqui não restará, ao infeliz, senão sair da gruta a correr e só voltar quando tiver apanhado algo com que atafulhe as bocas da mulher, da criançada e até de um ou outro vizinho que sofra de insónias.
Foi então só para atazanar o conjuge que se inventou a linguagem?
Não sejamos redutores: por Grunha ou Totó que nos pareça, a fala não serve apenas para atazanar o (a) conjuge,. Pode muito bem servir para atazanar outras criaturas. E pode também servir para enrolar o próximo ou, o que ainda é mais elaborado, gozar com ele, mal o tipo se afaste. Eu penso que, de uma forma ou doutra, a linguagem cumpre todas essas funções e em todas elas pode ou não ser bem sucedida, consoante o Patuá do comunicador.
O que é o Patuá?
O Patuá é a primeira língua falada pelos Macacos Pelados, logo, a língua mãe de todas as outras. Dela derivam portanto todas as línguas humanas e mesmo algumas línguas semi-humanas como o madeirense e o açoriano. Na sua primeira forma, o Patuá tinha uma utilização limitada à caça, às disputas domésticas e ao comércio forçado (tipo: ou me trocas esse porco por este coelho ou ficas sem porco e sem coelho). Com a passagem do tempo, a língua sofisticou-se e passou a servir também para o boato, a gabarolice, a maledicência e a cuskice. Em todos os casos porém, o objectivo central de quem falava Patuá não era tanto comunicar quanto mostrar ao outro quem era o mais esperto. Escusado será dizer que muitas das estruturas mentais do Patuá estão presentes nas línguas que a humanidade actualmente fala.
Que evidências existem da persistência do Patuá nas Línguas Modernas?
Expressões infantilmente enganosas como ‘Vai ver se eu estou lá fora’, ou ‘e tu que pediste ao Pai Natal este ano, meu menino?’ mostram-nos que enrolar os Totós é a função primeira e última da linguagem oral. Expressões mais ou menos inocentes como ‘morde aqui para ver se eu deixo’ ou ‘vou pensar no teu caso’ ou ainda a célebre ‘vai indo que já lá vou ter’ não deixam dúvidas quanto à sua função semântica: elas são usadas para mostrar ao Grunho que nos tenta enganar que já lhe conhecemos o Patuá.
E não é decerto por acaso que, de alguém capaz de levar outrém na sua conversa, se diz que « é tipo com um grande Patuá ». A existência do Patuá é reconhecida pois por todos, embora muitos Totós continuem a não ver relevância nesse facto.
Como se ramificou o Patuá até desabrochar nas línguas actuais?
Como se ramifica qualquer árvore, a genealógica incluída: de galho em galho, até ao rebento final. Certas línguas denotam porém maior influência do Patuá primitivo que outras, daí a superioridade dos povos que as falam quanto à arte de mafiar Totós. Inversamente, os que por fanhosice, gaguez ou tosse convulsa mais se afastaram da sua herança Grunha acabam por se juntar à imensa mole dos Totós.