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Sunday, March 20, 2011

II- O Livro dos Juízes (ou do pouco Juízo)

Estavam Sonsão e de Larila em sossego postos num banco Público do Jardim Botânico de Cudezeus, ele, escondido atrás da sua formidável trunfa, ela, cismando no meio de convencer o noivo a deixar aquela vida de fora da lei mal pago e sempre com salários em atraso...
- Ah Sonsão, sabes? Às vezes penso que nunca vou poder amar mais ninguém, senão a ti...
- E porque dizes isso, Larila? – pergunta o fortalhaço babando-se de prazer narcisista.
- Porque tu partes os dentes de qualquer desgraçado que ouse chegar-se a menos de cinco braçadas...
- Vá lá, não exageres, há quase uma hora que não bato em ninguém...
- Tu nada fazes por mim: nem aos meus pais foste ainda apresentado...
- E porquê? porque tu fazes exigências absurdas ...
- É absurdo que cortes o cabelo para te apresentar ao papá e à mamã?
- Tu bem sabes porque razão eu me recuso a cortar os cabelos!...
- Oh, tu és um tangas! Mas a culpa não é só tua: tivéssemos tido um sistema de escolaridade obrigatória com um mínimo de qualidade e tu terias compreendido certas coisas básicas...
- Tais como? –perguntou o rapaz bufando para afastar a madeixa que lhe deixava entrever o olhar da amada
- ... Que a força física, por exemplo, pode depender da alimentação, do exercício físico, da carga genética, e até da motivação do momento mas do que nunca dependerá certamente, é de ter uma grande guedelha...
- Pois é mesmo da guedelha que vem a minha força, acredites ou não...
- Safa...tu tiveste algum trauma na infância, envolvendo a figura de um barbeiro, é por isso que não queres cortar o cabelo?
- O meu cabelo faz parte de mim: Ou me aceitas como um todo peludo e quentinho no inverno, ou me mandas dar uma curva pelo deserto...
- O que eu sei –disse ela fazendo beicinho- é que sou a única miúda da minha idade que nem sequer pode gabar-te o olhar ou a boca, porque nunca te vi a cara, andas atrás desses cabelos como certas mulheres atrás do véu. A diferença é que elas têm de, e tu gostas de...
- Lá estás tu...não vês que tudo o que sou o devo a estes cabelos?
- Não, não vejo. Aliás não vejo nada, nem olhar , nem boca, só um matagal de cabelo...
- Que curiosas, as mulheres: para que precisas de me ver a cara?...
- Ouve lá- retorquiu ela indignada- tu namorarias comigo se nunca me tivesses visto a cara?
- Não sei –respondeu ele de pronto- é um caso para pensar...
- Que horror –gritou ela- tu és um monstro!!!
- Nem por isso –respondeu ele- só um tipo com esta cara que todos acham tão engraçada, tão engraçada,  que se mijam a rir!!!
- Oh, mostra-me a tua cara, por favor!!!
- Ñão posso, já sabes...
- Oh, eu juro que te vou amar na mesma!!!
- Não me amarias: o amor é demasiado sério para resistir à galhofa!
- Mas porquê? é proibido rir-se quando se ama?
- Bom, proibido não é desde de que o casal se ria de terceiros –disse ele como quem já tivesse pensado muitas vezes no assunto- mas se tu te rires da minha cara, eu não vou achar graça nenhuma...
- Oh se tu preocupasses assim com o nosso futuro. Tu continuas a não ter ocupação que se veja, andas com marginais, metes-te em arruaças e pancadarias, só não és procurado pela polícia porque nunca ninguém te viu a cara...
- Claro-disse ele com orgulho- eu cá sou um resistente. Se todos fossem como eu, já tínhamos expulso os tipos, e neste momento estávamos a comer tâmaras nessas metrópoles cosmopolitas dos infiéis, com escravos e escravas sempre à disposição...
- Expulsá-los?- exclamou horrorizada-mas eles trouxeram a Lei e a Ordem que antes deles não tínhamos...
- Vês? tu não tens orgulho da tua nação, do teu povo, do teu Deus– disse o rapaz para quem a namorada era um zero em coisas de política- És uma deslumbrada com os esses estrangeiros depravados...
- Tu tens é inveja- atirou-lhe ela com desdém...
- Olá...-ameaçou-a com o olhar- tu andas metido com algum Gabireu?
- ...E se andasse? ...achas que te dizia?...
-  Deixa-te disso: andas ou não andas? –gritou por detrás dos cabelos...
- Achas? –atirou-lhe sem cerimónias- tomara eu! Esses pelo menos têm maneiras,  portam-se à mesa, cortam o cabelo e aparam a barba.
Antes que se dê uma lamentável cena de violência doméstica, o todo proprietário faz aparecer ali, como que por acaso, um amigo de Sonsão, pretexto que Larila usa para sair, de fininho mas com ar mui aborrecido, não sem antes ter lançado um ultimatum:
- Ou te livras dos teus amigos esquisitos, cortas o cabelo e arranjas um emprego decente ou está tudo acabado entre nós!!!
- E arranjo um emprego decente onde?- perguntou o fulano que não tinha a escola toda.
- Porque não no exército dos Gabireus? Parece que não pagam mal e prá pancada tens tu jeito...
- Nunca!!! Nunca ouviste? Prefiro alimentar-me de gafanhotos a trabalhar para o inimigo.- gritou Sonsão para que Keiradeus não tivesse dúvidas que ele se mantinha fiel.
- Oh tu arranjas sempre desculpas para não vergares a mola...mas desta vez vais ter de te decidir...
E lá saiu ela de cena, deixando o namorado a remoer. Keiradeus, chefe da guerrilha olhava em todas as direcções desconfiado, como a confirmar que ninguém os espiava.
- Olá, Sonsão, chateaste-te de novo com a Larila?
- Oh, é sempre o mesmo- disse o cabeludo fingindo indiferença- sabes como são as mulheres, se as deixarmos até o nosso visual querem gerir...
- Em verdade verdadinha te digo que isso não me interessa para nada- mudou de assunto o guerrilheiro – vim confiar-te mais uma missão contra os Gabireus...
- Sou todo ouvidos, eh eh, vamos cobrar mais um mês de imposto revolucionário?
- Eu disse contra os Gabireus, não contra os nossos, vê lá se ouves bem!...
E Sonsão lá afastou um pouco as repas do ouvido esquerdo, que era dos dois o que fazia menos cera:
- Para levarmos a bom termo esta missão é preciso que te deixes prender pelos inimigo...
- Oh, oh: era o que faltava, achas-me com cara de tótó?
- Não discutas: estamos a falar de uma operação de grande envergadura. Tens de te armar um desacato qualquer perto da esquadra de recrutamento de Bathapala
- Ah, dessa parte gosto mais...
- Depois tens de te deixar prender. Os tipos vão levar-te para os calabouços dessa mesma jurisdição, que ficam nas subcaves do Palácio onde vive Matabreus, o rei inimigo Nessa mesma noite, o carcereiro, que se chama Salvarréus, libertar-te-á para que cumpras a tua missão
- Eu vou matar Matabreus?- Perguntou excitado, o espadaúdo.
- Isso é coisa que só o saberás no momento. Toda a operação deve manter-se secreta, não vá algum descuidado abrir a boca.
- Hhhmmmm, passar uma noite debaixo de telha talvez não me mate. Mas gostava de partir para esta missão menos às escuras...
- Lamento mas isto é um trabalho de equipa, a segurança de muita gente depende do sigilo de todos.
- E se eu recusar a missão?- perguntou Sonsão parecendo hesitante.
- Se recusares a missão, serás um dos sorteados para, às sextas-feiras ser oferecido aos Gabireus como bode expiatório, quando se vêm vingar de ataques nossos...
- Falemos da recompensa...
- Se a missão for mal sucedida, arrancamos-te os pelos da cabeça um a um, se for bem sucedida, tens o futuro assegurado...
- Deixa-te de promessas vagas, quero números, estamos a falar de quanto dele?
- Isso também o carcereiro te dirá. Aceitas ou não aceitas os termos do pré-contrato?...
- Hmmm, não sei, não...- e depois num repente- está bem seja!
- Bravo, Sonsão: eu sempre soube que tu eras um verdadeiro patriota.
- Qual quê? dos que nas histórias da carochinha, preferem morrer a virar costas à luta? Não me insultes pá, eu não sou parvo: aceito mas é por achar que um dia sem aturar a Larila talvez me traga algum sossego.
aAqui a imagem fecha-se, reabrindo já com Sonsão partindo as cadeiras de uma esplanada enquanto os turistas fogem horrorizados. Quando, duas horas depois, vindos do quartel ali em frente, os polícias chegaram para o prender, encontraram-no rouco e extenuado junto a uma pilha de cadeiras e mesas destruídas, arfando como um cão.
 Levaram-no para as masmorras do tal palácio, descendo três subcaves abaixo da cave, e foi já na escuridão da cela, duas horas após a sua prisão que ouviu uma voz:
- Estás aí Sonsão?
- Sim, tu és Salvarréus?
- Sou. Ouve, aproxima-te da porta, vou libertar-te já!
- Já, dizes tu? Estou aqui a secar há duas horas...
- Eu sei, eu sei, o tempo escasseia. Ouve bem:vai haver um Baile de máscaras onde vão participar altas patentes do exército, esposas, filhos, o Rei e respectivas esposas, concubinas e filharada É a altura ideal para lhes limpares o sebo a todos.
- Eu??? Sozinho? O Keiradeus disse que se tratava de uma operação de grande envergadura, contando com a colaboração de vários resistentes...
- E é: este ataque já está a ser planeado desde a construção das fundações deste Palácio...
- Ah sim? Mas tu disseste que eu é que lhes vou limpar o sebo...
- E vais: basta que deites duas colunas do palácio abaixo:
- E como vou ter força para isso podes dizer-me?. Eu sou um tipo jovem e robusto mas também não exagerem...
- Oh, tu vais conseguir: os materiais são de terceira categoria, tão marados como a construção. Tudo de fachada, tás a ver?
- Como é que sabes?
- Como havia de ser? Fomos nós que infiltrámos os engenheiros e o empreiteiro desta obra. Tivemos de os ir buscar à costa Atlântica da Ibéria, mas valeu a pena...
- Hmmm, sendo assim, de facto qualquer espirro vira o palácio de cangalhas. Mas se o tecto que vai cair mata os outros que garantias tenho que não me mate a mim também?
- Bom, tu tens uma cabeça dura, mas, em todo o caso, não me parece que tenhas alternativa: ou isso ou vais amanhã presente ao juiz. Mas antes fazem-te uma bela carecada.
- Não!!! isso não!!!
- Então? Decide-te depressa que os últimos convidados estão a chegar ao salão nobre...
- o.k., o.k., liberta-me e eu faço o que vocês querem...
o carcereiro abre-lhe a porta e dá-lhe as últimas instruções:
- Não tem nada que saber, é subir até ao rés de chão, virar à direita no átrio, forçar a entrada e deitar as duas primeiras colunas que te aparecerem pela frente abaixo. 
E lá vai ele mui ligeiro e gaiato e, ao chegar ao rés-do-chão, em vez de se dirigir ao salão nobre tentou pisgar-se pela porta de serviço: em vão pois estava barricada por razões de segurança. Ao ver aproximar-se os soldados da ronda, decidiu tentar entrar despercebido no baile de máscaras mas aí o porteiro barrou-lhe o caminho:
- Aqui só se entra com convite meu senhor...
- Convite?
- Sim, aquele pedaço de argila que tem uns desenhos catitas. O deste ano é bem giro, com estrelinhas e espirais em alto relevo, sem isso não o posso deixar entrar...
Sonsão não esteve com meias medidas e aplicou-lhe o seu famoso soco martelo que tinha a particularidade de pôr qualquer um, porteiro ou não, a ver estrelinhas e espirais em 3D multimédia. Feito isto, ajudou o desmaiado porteiro a estender-se no chão com alguma compostura e entrou por ali adentro. Ao contrário do que esperava, ninguém reparou nele: os depravados dos Gabireus e das Gabiruas, disfarçados de coisas que não lembram ao Diabo, estavam demasiado ocupados a dançar, beber licores e comer figos secos A coisa mudou de figura porém quando:
- Alerta vermelho, alguém disfarçado de salgueiro ou de esfregona desancou o porteiro e introduziu-se na festa sem convite...
Se Sonsão continuasse a comportar-se como até aí, talvez não estranhasse aquela rara criatura entre zebras, chitas, panteras e outra bicharada nem sempre reconhecível, mas como, instintivamente, foi recuando acabou por chamar a atenção de um tipo disfarçado de macaco, um tal Jadeu, general reformado da sexta brigada de combate à corrupção:
- Eh!!! Tu aí, disfarçado de peruca...
O pobre Sonsão, julgando-se descoberto, saltou para uma balaustrada, desta para um cortinado, e , pendurado neste, voou à Tarzan sobre os convidados indo cair entre duas colunas O rei mandou vir os arqueiros que de imediato se ajoelharam alinhados para apontar, enquanto a multidão aguardava excitada o fim da caça. Então, Sonsão encostou as costas à base de uma coluna, amandou os pés, contra a outra e esticou-se o mais que pôde. Compreendendo as suas intenções, os papagaios e as araras entraram em pânico:
-. SOCORRO UM TERRORISTA SUICIDA...
- ACUDAM , UM FANÁTICO DE Yavé..
Por causa da gritaria e da desconcentração, os arqueiros falharam o tiro e tiveram de recarregar os arcos, mas nesse tempo já as duas colunas começavam a dar de si, com um fragor terrível, já as traves e nervuras da abóbada perdiam os apoios verticais e até os tarugos e as telhas começavam a cair pelos intervalos da vigas...

(continua no próximo domingo)

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Viseu, Beira Alta, Portugal
autor satírico, cartoonista pseudónimo de António Gil, Poeta e Ficcionista, Não sectário, Agnóstico, Adepto Feroz da LIberdade de Imprensa e de Opinião...

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